LIVRO DE HAICAIS
10 de setembro a 17 de outubro de 1988
Crânios num ossuário.As pedras brancas invejam lhesMuito pouco as vidas.
Sono do mendigoPor baixo do céu. Que tetosHaverá em seus sonhos?
Alheio a este mundo,Uivando o cachorro tentaAgarrar a lua.
Chuva, qualquer diaNão acharás, ao caíres,Meu frio por baixo.
Nuvem ergue a pálpebra!Quero ver o olho de cegoCom que sonda a noite.
Viagem sem sentido.Atrás e à frente, na estrada,O vazio é um só.
Séquito até a tumba.Ah! roupas que nos esperamNo armário sem dono.
Ao punhal do raio,Branca de pavor, a noiteRonca um negro grito.
No ar, damas da noite.E as vidas nunca vividasJunto aos pós, na sombra.
Grei do vento. Folhas,Galhos rotos, pós, insetos,Passarinhos mortos...
Quantos, cada dia,Quando novamente te ergues,Sol, não se erguerão?
Lá embaixo, ouro e prataPor entre cordões de pérolas.A cidade à noite.
Casebres do morroNa tempestade noturna.Vaga lumes úmidos.
Chuva e névoa gélida.Que frio teria o sapoSe tivesse frio!
Noites do ator velho.Rebeladas no confusoSonho, quantas vidas.
Seis vezes a luzNesta janela. Seis poemas.Não posso dormir.
Esta, a nossa vida.No entanto as outras, as outras,Entre a brisa fria.
Mar por sob a lua...E os pontos brancos efêmerosComo muitos olhos.
Antes que algum nomeNos designasse, já rias,Pequena cascata.
Bramindo com fúriaAs ondas, sempre, antes mesmoDa nossa revolta.
Ainda não erguêramosQualquer reino ou templo, e o mesmoEras, fio d'água!
Esqueletos de árvores,Lampiões rodando no vento,No chão, sombras, bêbadas.
Sobre o monte lisoContra o céu uma só árvore.Gesto de vitória!
Sob a chuva intensaA alma da terra se evolaConversa em perfume.
Quero ouvir na noiteOs sapos que embalarão,Eternos, meu túmulo.
No antiquário turvo,Flutuando, entre o pó e os brilhos,O cheiro da vida.
Junto a uma rameiraSolidão dos corpos próximos.Ah! somos só almas!
Pelos labirintosIrei até perguntaremSe eu estou perdido.
Só, dentro da névoa,Nosso nítido passadoFura o agora umbroso.
Sempre, pelos becos,Há muitos anos os olhosDe um gato imortal.
Lá fora, no vento,Cabelos soltos e risos...E a vida tão pouca.
Surgindo da espumaConchas partidas, escamas...Sorrisos da morte.
Nos bambus já escuros,Morcegos, daqui, dali,Também sem destino.
Batendo em meus dentesA lua crescente, e um risoDuas vezes branco.
Gotas furiosas.Que ânsia da chuva e de tudoEm voltar à terra!
Bêbado, o mendigoVituperando o silêncioQue o apagará.
Virando, rompendoAs folhas secas, meus pésSem respeito aos mortos.
Quantas avós tuasMeus ascendentes pisaram,Pertinaz barata?
Entre as ruas, eu,E em mim, eu em outras ruas,Sob a mesma noite.
Quando lá naquelePíncaro eu me erguer, sereiCertamente eterno!
Dançando frenéticoNa estrada contra o crepúsculoFaz se o louco um deus.
Por trás do combateFeroz do vento e das nuvensA intocada estrela.
Que eu durma, é o que buscamOs homens todos, mas hojeAlgo os rói na noite.
Nada vos trairá,Meus olhos vivos na infânciaFlamejando aos mortos.
Entre o sol e as floresComo é difícil às vezesDesdenhar tal mundo.
No olho das ruínasAs íris dos vaga lumesSob as tranças de ervas.
Eu aqui, sozinho...As cortesãs na cidadeDevem rir agora.
No cais, os naviosPresos, rosnando, fadadosAo vagar eterno.
Lá, bem sobre a estrada,A casa entre flores ondeNão entrarei nunca.
Mãos moldando a terra.Mãos dentro dela dispostas.No meio o relâmpago.
Céu azul e enorme,Jamais serias vermelho!Que tenho eu com isso?
Jorros de água sobBrancas correntes de estrelas.Luz. Tudo é viagem.
Só, na madrugadaIr lado oposto ao de casa.Mais, não ter nenhuma.
Na noite trevosaEis, quando menos se espera,Teu semblante, lua!
Cuidado, este homemQue enches de chuva te ampara,Natureza, inteira!
Luzes das janelasSendo, não sendo, no tempo,Os faróis da morte.
Correi, moscas ávidas,E vós, sequiosos ratos,Que o banquete é findo!
Vaidoso da vastaMultidão dos seus iguaisO imbecil gargalha.
Porta muda.ChuvaLavando o vômito. Os ébrios.Rindo já se foram.
Tudo a natureza,Cruel, perdoa. Os arbustosCrescem sobre os crimes.
Som de uma água ocultaQue desce. Grilos da noiteNa floresta. Quando?
Este velho alheadoO que olha tanto lá foraOnde a vida existe?
Noutra casa, noutraLuz breve sobre outros móveis,Qual serias, alma?
Na esquina sumindoOs homens. Logo outros homensSumindo. Na esquina...
Ao tocar na águaA inversa imagem das árvoresTirita de frio.
Sem ninguém que os veja,Os grãos de pó, indo, vindo,Quando geme o mundo.
Ronco dos mendigosNa treva. Paz dos que nuncaPerderão mais nada.
Grito da sinetaNa última aula. Alegria.Depois o silêncio.
Nesta casa, comoTeria ocorrido a vida?Cidades do mundo!
Sobre mim a lua.Lá atrás das altas montanhasOutro deve olhá la.
Lâmpada vermelhaNo umbral da taberna. O ventoDiz que ela bebeu.
Perfume da chuva.Que fria limpeza deveChegar mesmo aos mortos!
Rompa a guerra ou ardaToda a cidade, a minhocaNão sairá da terra.
No jardim, à luzBranda e amarela, ninguémVendo o ao nosso lado.
Mosquito ferido.Quieta agonia de pernasE antenas na noite.
Ondas roucas, gotasTentando em vão pendurar seJunto das estrelas.
Com dedos dementesA árvore busca os cabelosQue lhe arranca o vento.
Para a aranha ao menosLá em cima deves ser música,Zumbido noturno.
Chuva me encharcando.Riso correndo entre as ruasDa desordem úmida.
Marchando no tempo,Antes de tudo e após tudo,Soberbo, o silêncio.
Sempre, a cada passo,Atrás de nós, entre os becosVindo, quem não fomos.
Velho, esta manhãNaquele pátio ruidosoÉ a que foi tua!
Sobre o cemitérioAs andorinhas gritandoNa luz do crepúsculo.
Entre o som das chuvasE a voz do mar, só nas nuvensA mudez das águas.
Da cachoeira em fúriaNa minha taça eis que beboA espelhada água.
Dedos dos bambusTocando na névoa o cantoCom que parte o vento.
Meio dia. O cegoMarcha, batendo, batendoSobre a própria sombra.
Mesmo esse macacoRidente, é incrível, um diaFicará calado.
Ouros do TesouroDa juventude, tão gastosDestas mãos já velhas.
No solar ruídoHá ainda verdes cortinasE um senhor, o sapo.
Toda a noite os raiosCaindo, longe, tão longeQue o trovão não veio.
Lavado, banhadoPor tuas mãos tantas vezes,Vê te agora, corpo!
Cabelos de névoaNo monte. De ontem para hojeEle ficou velho.
Volta dos campôniosJá tarde. Só o espantalhoVencerá a noite.
A formiga mortaNa poça lenta. No cosmosExplosões de estrelas.
Gritos das criançasAntes de serem chamadasPara se deitarem.
Tormenta de névoa,Eis que o dia se fez noiteMas que noite branca!
Para as rãs e os saposRajadas troantes de estrondosA chuva no charco.
Paisagem deserta.Mas não, lá bem longe, um homemE então tudo existe!
Em todas as portasUma só certeza: NossoLugar não é aqui.
Alexei Bueno
Aos 25 anos Alexei Bueno publica o LIVRO DE HAICAIS [100 haicais], e como contributo as Homenagens ao Japão prestadas por Literacia, nos oferta alguns deles, que partilhamos com nossos Leitores, nesta que é a sua Suíte Literária.
Difícil escolher o mais belo.Justos para homenagear o Japão, nesta hora de tanto sofrimento.
ResponderExcluirParabens Poeta!
Eliane Guerreiro Batista-RJ
A formiga morta
ResponderExcluirNa poça lenta. No cosmos
Explosões de estrelas.
Muito Lindo!
Thomás Barros Pimenta-JF