Poeta , Editor, ex-Diretor do INEPAC, Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro, e membro do Conselho Estadual de Tombamento.

sexta-feira, julho 22

Urbana ou natural, lusitana ou helênica...




O mar único de Sophia, visual e musical




Alexei Bueno

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar
[S.M.B.A/Inscrição, p. 40]


Sophia de Mello Breyner Andresen, ou simplesmente Sophia, como era universalmente referida em Portugal, fazia parte, quando de seu falecimento, de uma espécie de grupo canônico, indiscutido, clássico, dos grandes poetas portugueses vivos, em companhia de Herberto Helder, de Eugénio de Andrade, de António Ramos Rosa, de Mário Cesariny, talvez de muitos poucos outros. Mais velha deles todos, era ainda o grande nome feminino da poesia portuguesa contemporânea. Sua obra, relativamente curta, distingue-se fortemente da de todos os poetas citados, com a exceção talvez da de Eugénio de Andrade, com quem mantinha similitudes. De fato, sua poesia, essencialmente dominada pelo poema curto, em nada se aproxima dos grandes ciclos poemáticos de seu amigo Herberto Helder, nem da pletora quase grafômana de António Ramos Rosa, nem do apelo ao inconsciente de Mário Cesariny. Essencial, clara, cristalina, tudo o que escreveu confirma uma mundivisão ao mesmo tempo uma estética e uma ética, um desejo quase romântico de fusão de vida e obra, que exemplarmente cumpriu.

Urbana ou natural, lusitana ou helênica

Salta aos olhos na poesia de Sophia a sua inalterável unidade dentro do múltiplo. É sempre uma voz — implacavelmente única e muito nossa conhecida — que fala em seus poemas, invariavelmente surgidos, apesar disso, à distância de toda e qualquer constrição temática. Sua poesia é atemporal ou histórica, atlântica ou mediterrânea, urbana ou natural, lusitana ou helênica, política ou subjetiva, mas sempre se manifesta por tal voz única, que nunca se repete. Subjacente a tudo isso, através de tudo o que escreveu, essa consciência trágica da desaparição, do exílio da beleza do mundo a que estamos condenados, muito dolorida por muito sóbria, que talvez seja um dos fundamentos dessa mesma unidade.

O mar é o grande cerne de sua obra, o do Algarve ou o da Grécia, outra grande obsessão sua. Mais visual que musical — embora alcançasse seus maiores momentos quando unia essas duas postulações num todo irretocável — poderia situar-se geneticamente mais para a linha de Cesário Verde do que para a de Camilo Pessanha, não fosse tudo isso falsificações práticas que tentam escamotear a grande musicalidade de Cesário e a espantosa visualidade de Pessanha. Os poemas menos conseguidos de Sophia são, no entanto, aqueles, geralmente mínimos, em que o elemento sonoro parece renunciar a acompanhar o outro, e o complexo milagre do poema curto — que geralmente se resolve numa iluminação ou redunda em fracasso — não se cumpre totalmente, tangenciando às vezes o prosaico, coisa que aconteceu em um ou outro de seus poemas militantes, logo após o 25 de Abril, que lhe deram grande notoriedade em Portugal, mesmo se não fossem dos maiores momentos de sua obra.

   
Manuel Bandeira

Sophia de Mello Breyner Andresen



Este poeta está
Do outro lado do mar
Mas reconheço a sua voz há muitos anos
E digo ao silêncio os seus versos devagar


Relembrando
O antigo jovem tempo tempo quando
Pelos sombrios corredores da casa antiga
Nas solenes penumbras do silêncio
Eu recitava
"As três mulheres do sabonete Araxá"
E minha avó se espantava


Manuel Bandeira era o maior espanto da minha avó
Quando em manhãs intactas e perdidas
No quarto já então pleno de futura
Saudade
Eu lia
A canção do "Trem de ferro"
E o "Poema do beco"


Tempo antigo lembrança demorada
Quando deixei uma tesoura esquecida nos ramos da cerejeira
Quando
Me sentava nos bancos pintados de fresco
E no Junho inquieto e transparente
As três mulheres do sabonete Araxá
Me acompanhavam
Tão visíveis
Que um eléctrico amarelo as decepava


Estes poemas caminharam comigo e com a brisa
Nos passeados campos da minha juventude
Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro
E foram parte do tempo respirado.


O prefácio situa bastante bem a posição de Sophia, inclusive em relação ao Brasil, embora não compreendamos a classificação de Rilke como “romântico alemão”. O maior, talvez único, defeito do livro, encontra-se numa questão banal de semiótica gráfica. Muitos dos poemas não levam títulos. Consideramos um equívoco não marcar de nenhuma forma o início de cada um, seja por capitular, primeira palavra em negrito, ou mesmo, em último caso, pelo uso do primeiro verso como título. O que é imperdoável é marcar o início dos poemas não titulados apenas pela altura da página. Não haverá leitor na face da terra que, ao ler a “Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal”, seguramente um dos mais belos poemas da autora, na página 108, não o emende com o primeiro verso do poema sem título da página 109, exceto o conhecedor da sua obra. E tal possibilidade se repete algumas vezes. São desleixos de composição que se tornam comuns, como o inacreditável processo de margear poemas pela direita, como se lêssemos em árabe. Excetuando esse senão, o lançamento dessa primeira e vasta antologia de Sophia é uma festa para o leitor de poesia.



[ Poemas escolhidos, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Seleção de Vilma Arêas. Editora Companhia das Letras, 288 páginas. ]






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