DOS POEMAS GREGOS, 1984
Alexei Bueno
Dos homens, porque as têm,
As faces vão se embora,
Enquanto, na alvorada,
Os de hora breve pássaros
Por anos sem lembrança
São sempre o mesmo canto.
Pois ser um é ser morto,
E assim é que pagamos
O sermos, como os deuses,
Um só, um que não torna,
Porém não como eles
Às Parcas superiores.
Por isso o instante dói,
Como a mim, ao que enxerga
As folhas que não voltam,
E vê, na hora mais viva,
E não na madrugada,
A ágora deserta.
***
Os deuses, como nós, não sabem nada
E só serenos vivem
Porque, infinitos sendo,
A vida é lhes bastante só saber.
Pois se assim também fôssemos, as trevas
Do oculto murchariam
Perante a luz doméstica
Do nosso então, que acesa seguiria.
Mortais, porém, entre dois grandes mares
Sem astros nem farol,
Frágil batel, boiamos
À espera de que a vaga nos destroce.
E tudo é frio e frágil. E a verdade
Que neste espaço temos
Fora dele não segue
Qual nosso archote, aonde possamos dar.
Por isso assim trememos, e se rimos
Debaixo do ócio efêmero
O medo em nós prossegue
E ele mesmo, com medo, se une a nós.
E abraçados choramos. E no Olimpo
Até os divinos temem
Então, como sentindo
Que a eles mesmos a Parca há de cortar.
***
Tudo, menos tu, Cronos, morrer pode.
Mesmo os deuses à morte estão sujeitos.
Mesmo o Fado, que até a eles subjuga,
Não se interpõe a ti.
Só tu reinas, e findos ainda um dia
Os deuses, e os mortais, e os mundos todos,
E o olímpico monte em pó tornado,
Tu, eterno, seguirias.
Pois, mais que os nossos olhos que te vissem,
Num vácuo até de ti, sem quem a olhasse,
Tua gota a cair continuaria,
Sem gota, ou queda, ou nada.
***
Eu, contrário ao geral dos outros homens,
Muito pouco respeito por vós, deuses,
Tenho, e nem temo que em castigo um raio
Divida me a cabeça.
Porém incréu não sou, embora o pouco
Que soe a minha lira eu nunca às musas
Tenha devido, mas talvez à ausência
Das nove, e os deuses muitos.
Porque o meu peito, que ambiciona o eterno,
Não se farta convosco, vãs deidades,
Que o vulgo do seu sonho modelou
Em era já apagada.
Mas antes no universo incompreensível
Te entendo a força, Zeus, que não existes,
E de Apolo o semblante luminoso
Sinto vivo em meu peito.
Como escuto Dionisos quando à noite
Dois bêbados ao pé do templo caem,
E de Afrodite fito a imensa graça
Nas jovens intocadas.
E a Posêidon sei ver sob as tormentas,
E Tânatos, mais forte que os mais todos,
Encaro quando os meus se vão, e eu ouço
Pulsar me o peito efêmero.
Porém, quando isso ocorre, eu, deuses, toco
Não em vós, mas no barro que moldou
Vossas belas, porém frágeis, estátuas
Por mãos da mesma terra.
E tu mesma, terrível Moira, que enches
De medo os imortais e os que o não são,
Eu sei como és um sonho, tu que os fatos
Só fazes quando feitos.
Logo não creio em vós; mas nessa hora
Em que deixais deserto o monte Olimpo
E no não penetrais, deuses caídos,
Cabisbaixos e humildes.
Então, quando há só o nada e o grande Cosmos,
E o do homem espírito insaciado,
Algo eu vejo, que as palavras não dizem
E o próprio ser não sabe,
Algo tão alto e estranho que até a vós,
Pobres deuses sem chão, tal força um dia
Vos enfim fazer vivos poderia,
Tornando vos verdade!
***
Tais como as ondas que do mar perpétuas
Fortes levantam se, e em frente caminham.
Tais como as ondas, que as mesmas não são
Jamais, enquanto lhes durar seu curso.
Tais como as ondas que na areia morrem,
E voltam brancas para a água eterna.
Sem deixar rastro, um som, um ronco, um sulco,
Sob as do agora, como as de antes delas.
***
Tanto por nós os deuses se interessam
Quanto nós pelos vermes detestáveis
Que rondam nossos pés. Quase os não vemos,
E, vendo-os, os matamos.
Portanto, nunca aos deuses atribua,
Mortal, teu claro dia, ou teu suplício,
Já que ambos, quando vêm, não nos vêm deles,
E nem do Fado ao menos.
Pois este é a própria ausência, e a ela se curvam
Os imortais, e o mundo, e os céus, e os homens,
E é bem por nossa sorte que os do Olimpo
Não reinem sobre nós.
Pois se assim, como julga o vulgo, fosse
Desgraças muito mais nós sofreríamos
Pois em nós os de lá descontariam
Seu tédio, ou sua dor.
***
Sob os de Hélios raios,
Sobre a relva fresca,
Vendo os pontos áureos
Mil, que, abelhas, voam,
Tendo da água o canto
Com que vai à morte,
E ouvindo a conversa
Dos caniços frígidos,
Assim, mortal, quase
Sou um deus. Não penso.
***
Em Síbaris, no porto, te recordo,
Vendo as naves, minha natal cidade,
De Palas protegida, enquanto os ágapes
Preparam se na treva.
Quem não sonhou o eterno, nem um bloco
De partido epitáfio o lembrará,
Ainda que engenho habilidoso o faça
Com arte não sincera.
Assim, desta que no festim se espoja
Radiosa urbe, talvez nem escombros
De ervas vestidos possam ao viajante
Marcá-la no porvir.
Porém tu, minha terra, que te alçaste
Em pedra e alma até o mistério etéreo,
De ti nada cairá, ainda que honrando
Tua derrota eterna.
***
Do inacabado livro nosso, a vida,
Em vão nos perguntamos em que frase
Truncada, ou em que sílaba
Partida, a Moira cega o vai parar.
Enquanto alheio, entre os seus rolos muitos,
O vento passa, o mesmo
Que nada nos contou quando passava,
E vira as folhas brancas, incontáveis
Mortalhas, sobre nós.
***
Desde que o fogo, Prometeu, nos deste,
No Cáucaso do nosso próprio espírito
Como tu, mesmo em marcha, estamos presos
E o tempo é o nosso abutre.
Nunca mais, por tua causa, pararemos,
Em nosso próprio andar agrilhoados
Como cegos que gemem por não verem
O que vêem no entanto.
Mas um dia, algo oculto e claro o pede,
Seremos finalmente, e como os nossos
Teus grilhões do não ser romper se ão,
E a ave enforcarás.
Foi por isso que o injusto deus um dia,
Temendo algo maior, aprisionou te,
Mas já no Olimpo todos ouvem trêmulos
Os nossos próprios passos.
***
Os homens, quando crianças, são eternos,
De Tânatos a face os não marcou
Ainda, e eles a fitam
Como a de um deus distante.
O da Noite dileto filho a eles
Parece, com seus pés tortos e velhos,
Como um deus sem poderes
Por tão longe o seu cimo.
Os outros, diurnos deuses, de sua olímpica
Vida eterna, estes sim, parecem próximos
Pois deles é o instante
Do amor e da conquista.
Porém, depois, são eles que estão longe,
E a criança senil, que não viria,
Acerca se, e nos mostra
Seu paciente poder.
***
Pobre Leucipo, contra ti o destino
Se armou de crespo olhar. Também para outros
Com de razões igual ausência, ele
Abriu a meiga face.
Tu no entanto da mais baixa rameira
De Atenas foste fruto, e a vida toda
Levaste, além do pejo, a acre suspeita
De ver teu pai num desses
Nobres velhos que pela ágora em grupo
Sorrindo passam com seus finos trajes,
E se nenhum foi teu por glória, todos
O foram por vergonha.
Depois pediste aos deuses a ventura
Que vias claramente, mas teus dias,
Mais brancos do que o mármore, fugiram te
Como do porto as naves.
E sem uma hora de triunfo na alma,
E sem uma memória na dos outros,
Certa tarde na acrópole, das nuvens
Inchadas de tormenta,
Um fulminante raio, mais preciso
Que outro qualquer que Hefestos fabricara,
Em bloco de carvão, por Zeus mandado,
Te fez perante os homens.
Desde esse dia lembram-te com honra,
Desde esse dia, vítima de um deus
Caprichoso, ao teu túmulo se estendem
Os olhos dos que vivem.
Desde esse dia olvidam te a ascendência,
E o de teus dias pântano asqueroso.
Assim, qual luz na treva, nesta treva
Tanto arde um brilho estranho!
Por ser prova aos que crêem de uma ausente
Vontade, e de uma lógica lendária.
E é assim que ao receber tal fogo, um fogo
Ateaste na esperança
Dos mortais, que divino hoje te tomam,
Pela assassina luz, que ao te ser morte
Foi mais do que ela a eles. Porém tua
A escuridão prossegue.
***
Viemos ao mundo no ventre do Acaso, e ele só, neste mundo,
Sem nos querer nem sonhar, célere nos acolheu.
***
Gotas do sol nas vestes, tão velozes
Como vós nossas horas nos deixaram
E tudo foi um sonho
Que o peito nos tortura.
Manhãs do amor sonhado, noites dele
Ausente, e a voz das almas que adoramos,
Como a fumaça foge
No turbilhão, fugistes.
Por isso é a só saudade o que nos resta
De tudo, mas de ti, o mais sonhado
Momento, nem saudade
Pudeste nos deixar.
E o rosto que esperamos não surgiu
À luz, ou dela caiu na sombra eterna,
E assim é que não cremos
Que o nada nos criou.
Pois muito grande és, dor, para que um homem
Que te viu possa conceber ao menos
Que pelo acaso vieste
E acabar te ás por ele.
Pois te acabas, veloz, e, sem piedade,
Partes levando o nosso sonho aos braços,
E nem o mal nos deixa
O bem de nos lembrar.